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Profa. Carmen Flores-Mendoza
Sociedade de Avaliação Psicológica de Minas Gerais Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais – UFMG

Poucos dias atrás recebi a tradicional mensagem de “merry Christmas” do professor Richard Lynn na qual me informava que, em 11 de dezembro, seu grande colega e amigo James Robert Flynn tinha falecido aos 86 anos em Nova Zelândia. Também me informava que em 05 de dezembro tinha falecido sua amiga Sybil Eysenck (esposa de Hans Eysenck, referência mundial na psicologia diferencial) aos 93 anos de idade. Para o professor Lynn as perdas dos seus grandes amigos o fizera observar que, no momento, era o mais velho pesquisador de inteligência no mundo. Ele está correto. O tempo passa e, sem dúvida, cada vez menos há grandes pensadores psicólogos individuais no mundo. A produção individual intelectual está dando passo à produção coletiva. Se isso é bom ou ruim, ou é apenas sinal de que a alta tecnologia exige o esforço acadêmico de várias mentes, só o tempo o dirá.

Ao procurar informação na imprensa internacional do falecimento do brilhante acadêmico James Flynn encontrei muito pouca, e a que encontrei era sucinta e restrita a Nova Zelândia. No momento, a imprensa focaliza sua atenção quase que exclusivamente ao impacto das novas restrições sociais pela variante do covid-19 imposta pelos governos da Europa e ao início da vacinação em massa em alguns países. Minha busca de informação nos jornais de América Latina foi ainda mais penosa. Não encontrei uma nota sequer, embora alguém teve a amabilidade de traduzir do inglês ao português a biografia do professor Flynn no Wikipédia. Por parte da academia, os colegas diferencialistas me informaram da página-tributo que fizeram com fotos, vídeos, trabalhos e artigos do cientista americano, a qual pode ser vista em https://james-flynn.net/works-about/

A final de contas, quem foi James Flynn? E porque seu legado é importante para países como Brasil? James Flynn foi um cientista político que na década dos 80 ingressou nas discussões da psicologia científica sobre inteligência, QI e herdabilidade. Seu famoso artigo de 1987, publicado na Psychological Bulletin [Massive IQ gains in 14 nations: what IQ tests really measure], chamava a atenção dos acadêmicos sobre aumento da média em testes de inteligência a qual se revelava nas atualizações destes. Ou seja, a cada atualização ou normatização dos testes cognitivos as pessoas acertavam mais pontos. Tal aumento era incompatível com o postulado da alta herdabilidade da inteligência (diferenças no fenótipo determinadas pelas diferenças nos genótipos) apontadas pelos estudos de genética comportamental desde o início do século XX. Essas pesquisas mostravam que a correlação entre o desempenho cognitivo de pessoas que compartilham os mesmos genes (ex. gêmeos) girava em torno de 0,70 apesar delas terem sido criadas à parte (ex. gêmeos criados em família distintas). Portanto, a influência ambiental teria um impacto bastante reduzido nas diferenças intelectuais que separam as pessoas. Nesse sentido, se as evidências dos estudos genético-quantitativos forem precisas e a interpretação correta, como se explica então que ao longo das gerações as pessoas respondam melhor aos testes de inteligência, a razão de 3 pontos de QI a cada década (a depender do pais)? Na história da evolução humana, o “Great leap forward” (primeira manifestação da cultura humana de vestuário, caça, rituais funerários) ocorreu aproximadamente há 50 mil anos e a escrita há 6 mil anos, evidências de um considerável aumento cognitivo filogenético. Portanto, como é possível que os testes de inteligência apontem um aumento cognitivo humano em tão curto período de tempo? Por outro lado, se em função do ganho de QI, as normas dos testes devem ser ajustadas a cada geração, significaria acaso que as pessoas de 1980 eram menos inteligentes que as de agora 2020? E as de 1940 menos inteligentes que as de 1980? O que dizer então das pessoas de 1900? O que dizer das pessoas do século XIX, XVIII, XVII e assim em retrospectiva? Talvez os testes de inteligência não meçam de fato a inteligência, ou talvez os ganhos de pontos de QI observados não sejam da inteligência central propriamente dita e sim de habilidades especificas que são fomentadas, treinadas ou abandonadas de acordo com o desenvolvimento e conveniência das sociedades ao longo do tempo. Diversas perguntas e diversas tentativas de respostas foram e continuam sendo levantadas pelos pesquisadores da inteligência.

James Flynn ele próprio se enveredou em um árduo e profícuo trabalho de desvendar o mistério. Para aqueles interessados em maiores informações, as publicações de Flynn estão listadas na página-tributo da web anteriormente mencionada. Entre os numerosos estudos realizados sobre os ganhos cognitivos de geração ou chamado também de “efeito Flynn” (embora o professor Richard Lynn tenha advogado pela mudança do nome para “efeito Runquist”, psicólogo que descreveu o fenômeno nos EUA em 1936), talvez a evidência mais desconcertante seja aquela conhecida como efeito anti-flynn (decréscimo de QI) observada em alguns países desenvolvidos (Bratsberg, & Rogeberg, 2018) e o consistente efeito Flynn (ganhos de QI) em países em desenvolvimento. Essa polaridade nos ganhos poderia, com o passar do tempo, estreitar a distância cognitiva que separa os primeiros países dos segundos (Wongupparaj, Kumari, & Morris, 2015).

No Brasil, os estudos são contraditórios. Enquanto em Minas Gerais demostramos um aumento de 17 pontos de QI em um intervalo de 72 anos (2.42 pontos para cada década) analisando os desenhos de crianças belo-horizontinas de 1930 e 2002 (Colom, Flores-Mendoza, & Abad, 2007), em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, o efeito Flynn não foi observado em um intervalo de 20 anos para desenhos e de 10 anos para as Matrizes Coloridas de Raven (Bandeira, Costa, & Arteche, 2012). Atualmente nosso Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais, na UFMG, analisa outros dados na busca de corroboração ou não da primeira publicação.

Cabe destacar que o fato de uma população responder melhor aos testes de inteligência em poucas décadas implica que algum fator ambiental opera no desenvolvimento de melhores cérebros ao longo das gerações. E melhores cérebros significa melhor capacidade de resposta a desafios cognitivos. Por exemplo, a criação da vacina contra o influenzavirus H1N1 somente foi possível em 1944, depois de 26 anos de haver ocorrido a pandemia conhecida como gripe espanhola no século passado. No ano de 2020, o desenvolvimento da vacina para prevenção da Covid-19 foi feito em menos de um ano. E isso foi conseguido graças à rápida ação cognitiva de cientistas e pesquisadores. Criou-se um método inovador, um método que reduziu de 10 anos para 10 meses o tempo de desenvolvimento da nova vacina. Não seria mais atenuação ou inativação do vírus (método tradicional) e sim a criação de uma molécula sintética (RNAm mensageiro) que simula o material genético do SARS-Covid-2. Ao ser inoculada no corpo humano, a molécula ativa o sistema imunológico para a produção de anticorpos contra o vírus. Foram três fatores que propiciaram o desenvolvimento da vacina contra covid-19 em tempo recorde: dinheiro, talento científico e sorte (havia pesquisadores trabalhando com tipos de coronavírus antes da pandemia). Entretanto, tire o talento do conjunto de fatores e a vacina para Covid-19 teria tomado muito mais tempo para desenvolve-la. Portanto, o desenvolvimento da vacina para Covid-19 representa, na essência, um trunfo da inteligência humana.

O alto capital humano (ou capital cognitivo, como costuma se referir o colega Heiner Rinderman em seu novo livro de 2018) se concentra em países desenvolvidos que sabem do seu valor e investem pesadamente nele. Daí que saber que em alguns desses países a média de QI está diminuindo deve alarmar seus governos. De maneira geral, urge investigar que fator é esse que propicia o desenvolvimento cognitivo das pessoas, pois sua limitação não apenas afeta as nações como também, seguindo a previsão de Herrnstein e Murray (1994), afeta a sociedade como um todo pelo choque de dois grupos de pessoas: os da elite intelectual e o restante da sociedade. Ao que parece, tal choque social já está em curso. A Quarta Revolução Industrial caracterizada pelo Big Data (predição do comportamento por meio do processamento de informação em alta velocidade de grande volume de dados), IoT (Internet das Coisas), AI/Machine Learning (inteligência artificial) requer habilidades cognitivas sofisticadas. Esses mecanismos tecnológicos são os que, segundo o World Economic Forum (2016), eliminarão em breve 70% dos trabalhos relacionados à oficina e à administração. No momento é fato que a Quarta Revolução Industrial produz muita riqueza com poucas pessoas. Por exemplo, a empresa de tecnologia Apple teve ingressos de U$274 bilhões até novembro 2020 empregando 147 mil pessoas, enquanto a Samsung reportou ganhos de U$206 bilhões em 2019 empregando 287 mil pessoas. Os ingressos dessas duas companhias são maiores que o PIB de qualquer nação latino-americana, com exceção do Brasil e do México. Em 2008, as indústrias que produziam maior riqueza no mundo estavam concentradas em gás e petróleo (36%), enquanto que as de tecnologia e serviços de consumo estavam em terceiro lugar (16%). Uma década depois, em 2018, as companhias de gás e petróleo passaram a um terceiro lugar (7%), e as de tecnologia passaram a ocupar o primeiro lugar em riqueza (56%). Devido à massiva migração da sociedade para o uso da tecnologia durante o período da pandemia, muito provavelmente as empresas de tecnologia terão aumentado ainda mais seu nível de riqueza em 2020. A esse respeito deve-se destacar que na era da economia baseada em dados, apenas 2% das data centres (centros de armazenagem e processamento de dados digitais) se localizam na América Latina. Por outro lado, as principais plataformas digitais globais se distribuem praticamente em quatro regiões/continentes (USA/Canada, Europa, Ásia e uma plataforma criada na África). América Latina não participa dessa distribuição (United Nations Conference on Trade and Development, 2019). Os dados falam por si só em que posição social e tecnológica nos encontramos enquanto sociedade e país.

Os psicólogos diferencialistas temos a séria suspeita de que à medida que o mundo se torne cada vez mais tecnológico, haverá a necessidade de repensar (e redesenhar) políticas de educação, emprego e de benefícios sociais, pois uma parte considerável das populações não atenderá às exigências cognitivas requeridas pela alta tecnologia. Ou sim? O cientista político James Flynn infelizmente não está mais entre nós. Deixou à psicologia científica o desafio de responder a essa questão.

Tomara que se consiga.

Texto escrito em 25 de dezembro de 2020.

Referências

Bandeira, D. R.; Costa, A. & Arteche, A. (2012). The Flynn effect in Brazil: Examining generational changes in the Draw-a-Person and in the Raven’s Coloured Progressive Matrices. Revista Latinoamericana de Psicología, 44, 9-18.

Bratsberg, B., & Rogeberg, O. (2018). Flynn effect and its reversal are both environmentally caused. Proceedings of the National Academy of Sciences, 115 (26) 6674-6678. https://doi: 10.1073/pnas.1718793115.

Colom, R., Flores-Mendoza, C., & Abad, F.J. (2007). Generational Changes on the Draw- a-Man Test: A Comparison of Brazilian Urban and Rural Children Tested in 1930, 2002 AND 2004. Journal of Biosocial Science, 39, 79–89. https://doi:10.1017/S0021932005001173.

Herrnstein, R.J., & Murray, Ch. (1996). The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life. Free Press.

Rindermann, H. (2018). Cognitive Capitalism: Humasn Capital and the Wellbeing of Nations. London: Cambridge University Press.

United Nations Conference on Trade and Development (2019). Digital Economy Report 2019. Value Creation and Capture: Implications for Developing Countries. Retrieval on https://unctad.org/system/files/official-document/der2019_en.pdf.

Wongupparaj, P., Kumari, V., & Morris, R.G. (2015). A Cross-Temporal Meta-Analysis of Raven’s Progressive Matrices: Age groups and developing versus developed countries. Intelligence, 49, 1-9. https://doi.org/10.1016/j.intell.2014.11.008.

World Economic Forum. (2016). The Future of Jobs. Employment, Skills and Workforce Strategy for the Fourth. Retrieved 9 December 2017, from https://www.weforum.org/reports/the-future-of-jobs.